Esta pintura da artista Evelyn De Morgan parece ilustrar a história de Gulia Tofana, embora seu título seja 'Poção do Amor', também poderia servir para as mulheres que usaram água-tofana |
Em 1791, o compositor clássico Wolfang Amadeus Mozart jazia em seu leito de enfermo convencido de que havia sido envenenado e certo de que sabia por qual substância.
"Alguém me deu água-tofana e calculou o momento preciso da minha morte."
A água-tofana era um veneno lendário e ideal para levar a cabo crimes perfeitos, por ser insípido, inodoro e incolor, e assim, passava despercebido.
Seu efeito podia ser dosado por quem o administrava, permitindo calcular o momento da morte para uma semana, um mês ou até um ano à frente, e não deixava traços no corpo da vítima.
A história do misterioso líquido que atemorizava a Europa à época do compositor remonta a um século antes. E conta-se que mais de 600 homens teriam sido mortos sob seus efeitos pelas mãos de suas esposas antes que o segredo fosse revelado.
Os detalhes do que aconteceu, no entanto, são tão obscuros como os das melhores lendas.
Maná de São Nicolau
A versão mais conhecida conta que a água-tofana foi uma criação de uma nobre italiana chamada Giulia Tofana, que viveu durante a primeira metade do século 17.
Ela se dedicava à produção de cosméticos artesanais, entre eles, esse produto para mulheres que tinham um problema mais grave do que imperfeições faciais.
Segundo seus contemporâneos, a água-tofana era vendida disfarçada de "Maná de São Nicolau de Mira", um óleo medicinal que supostamente gotejava milagrosamente dos ossos do santo, e que era comumente encontrado nos lares da época.
Conforme relatou a revista Chamber's Journal em 1890, poucas gotas bastavam para dar fim à vida do mais forte dos homens.
"Administrado no vinho, chá ou algum outro líquido pelo traidor, [produzia] um efeito quase imperceptível; o marido ficava um pouco mal humorado, se sentia fraco e abatido, tão ligeiramente indisposto que dificilmente chamaria um médico. Após a segunda dose de veneno, essa fraqueza e abatimento se tornavam mais perceptíveis."
"A charmosa Medeia, que mostrava tanta preocupação pela indisposição do marido, dificilmente seria alvo de suspeita, e talvez até preparasse a comida do esposo, conforme recomendado pelo médico, com suas próprias mãos delicadas. Dessa maneira, administraria a terceira dose, prostrando até o mais vigoroso dos homens."
"O médico ficaria completamente perplexo ao ver que a doença aparentemente simples não respondia aos medicamentos, e enquanto ele ainda não sabia a natureza da enfermidade, outras doses eram dadas, até que a morte levava a vítima."
Por que tantas mulheres?
Conta a história que Giulia Tofana teria fornecido a substância venenosa a centenas de mulheres italianas, até que uma delas se acovardou antes de servir um prato de sopa envenenada ao marido e acabou revelando o que tantas haviam calado.
Se você se pergunta por que havia tantas mulheres dispostas a cometer tal crime nessa época, lembre-se que naquele tempo casar-se por amor era uma novidade. Os casamentos, inclusive de mulheres relativamente poderosas, eram arranjados sem levar em conta como seria o futuro dos envolvidos.
E dado que a ordem social condenava as mulheres sempre à subalternidade, não surpreende que muitas acabassem em becos sem saída em que, se o marido fosse violento, até suas próprias vidas poderiam estar em risco.
No entanto, algumas vezes, os motivos eram outros, como num caso encontrado pelo historiador Mike Dash.
Por amor
Maria Aldobrandini, parte de um dos clãs mais poderosos e influentes da nobreza de Roma, casou-se, aos 13 anos, com o duque Francesco Cesi, descendente de uma família muito distinta.
Seu pai fora um proeminente cientista, íntimo de Galileu, e ele próprio era sobrinho do futuro papa Inocêncio 11. O marido era pelo menos trinta anos mais velho do que ela.
O duque de Ceri morreu repentinamente nove anos depois do casamento, em 1657, e se tornou o mais rico e poderoso dos envolvidos no escândalo de envenenamento por água-tofana.
Umas poucas gotas eram suficientes |
Segundo o relato de Alessandro Ademollo (1826-1891), que publicou os resultados de suas investigações baseadas em antigos registros judiciais do Arquivo do Estado de Roma, Giovanna de Grandis — que trabalhava para Tofana — confessou que Aldobrandini havia se apaixonado perdidamente por outro conde, Francesco Maria Santinelli, e isso a levou a querer se livrar do marido, que já estava doente.
Recorreu ao pároco que fornecia arsênico às mulheres do grupo de Tofana, o padre Girolamo de Sant'Agnese in Agone, uma igreja no centro de Roma.
O padre conseguiu para ela água-tofana e, alguns dias depois, o conde de Cesi jazia em seu caixão.
A condessa, no entanto, não conseguiu o que seu coração desejava. Sua própria família a trancou para evitar um segundo casamento escandaloso com seu amante.
E, anos depois, quando veio a público a verdade sobre os envenenamentos, tornou-se suspeita da morte do marido. Mas, para evitar o escândalo, ela nunca foi acusada.
Incongruências
O problema da história são os detalhes. Algumas versões garantem que Giulia Tofana operava na Sicília na década de 1630. Outras situam a história muito mais tarde e em outros lugares: em Palermo, Nápoles ou Roma.
Às vezes, conta-se que foi ela a inventora da poção. Outras, que herdou a receita de sua mãe. E não se conhece o ingrediente de tão eficiente elixir, embora quase todas as fontes mencionem arsênico.
"Os mistérios se multiplicam quando consideramos a controversa pergunta de quando e como Tofana morreu", diz Dash.
"Uma fonte diz que morreu de causas naturais em 1651, outra que encontrou refúgio em um convento e ali viveu durante muitos anos, sem deixar de produzir seu veneno e distribuí-lo através de uma rede de freiras e padres."
"Várias afirmam que foi presa, capturada e executada, embora divirjam quanto à data de sua morte, se foi em 1659, 1709 ou 1730."
"Em um relato especialmente detalhado, Tofana teria sido retirada de seu santuário, estrangulada, e depois seu corpo teria sido devolvido à noite à mesma área do convento de onde ela havia sido retirada."
E Mozart?
Mozart de fato nunca se levantou de seu leito de enfermo. Morreu em 5 de dezembro de 1791, aos 35 anos.
Quase 230 anos e dezenas de estudos depois, ainda não se sabe qual foi a causa. Embora possa ter sido veneno, ninguém mais fala em água-tofana.