Foto: Pery Salgado - PR PRODUÇÕES
Venho trazer hoje neste espaço do CULTURARTEEN e do HÁ-NIMAL um tema muito interessante e que sempre me chamou atenção: a amizade entre a raça canina e os mendigos espalhados pelas ruas das cidades. Não somente os mendigos, mas pessoas carentes, que mesmo passando dificuldades, não abrem mão dos seus amigos de quatro patas.
Com efeito, lendo recentemente artigo s sobre o tema, gostei bastante do artigo "Digressões Caninas", do publicitário e jornalista Nelson Cadena, que foi publicado no jornal Correio da Bahia há anos atrás, mas infelizmente muito pouco divulgada. Com conhecimento de causa (e vocês verão porquê), o articulista fala desse relacionamento com realismo, riqueza de detalhes e uma emotividade mais do que justificada!
Agora entendo o que justifica esse invejável relacionamento que observamos entre os “vira-latas” (essa raça - ou falta de raça - maravilhosa) e os moradores de rua, por onde quer que se vá. Recomendo a leitura - jornalista Pery Salgado.
DIGRESSÕES CANINAS
Não sei se você já reparou a incrível atração que os mendigos exercem sobre os cachorros vira-latas, ou será o contrário? Mas onde quer que há um esmoleiro há um séquito de cachorros que o seguem com fidelidade para além da amizade canina que, desde eras remotas, se atribui ao cão em relação ao homem. E que importa se o mendigo, já alterado por duas doses de pinga, ou um mau pensamento, xinga e chuta o animal, ou se bate nele com um pedaço de pau, enxota, lá estará o cão em volta dobrando o joelho e abanando o rabo como que pedindo desculpas. E logo mais ambos estarão dividindo o mesmo pedaço de papelão no chão frio da calçada e a mesma fome e compartilhando o calor dos corpos e o mau cheiro. E um zela pelo outro, de modo que não há como aferir quem é mesmo o protetor ou o protegido.
Cães e mendigos têm códigos incompreensíveis para o resto dos mortais, solidários na privação e na rotina, e não há nenhum osso suculento, nem um banho perfumado que seduza o animal e o tire de perto do mendigo, seu servo e senhor. Entre o conforto de uma casa de família, como costumamos dizer, e o desconforto da rua, o cão há de se manter apanhando e dobrando o joelho e abanando o rabo e dividindo a fome. Estranho magnetismo esse que a simples razão não há de explicar.
Talvez o segredo da fidelidade canina, para além da decantada amizade que já rendeu e ainda rende muita prosa, esteja na atemporalidade do estado de mendicância. O morador de rua, diferente dos outros mortais, tem como única referência de tempo o minuto vivido. Para o mendigo, não existe mais tarde, depois, ou, amanhã. Suas necessidades são imediatas, caninas. Digo isso com algum conhecimento de causa, também pernoitei muitas vezes embaixo de marquises, ou em bancos de praça, foi nos meus tempos de hippie, para que fui lembrar disso agora?
Ao anoitecer, o morador de rua, diferente do comum das pessoas, não dorme. Ele morre. Para ressuscitar no dia seguinte, perante os primeiros raios do sol, e então constatar que melhor teria sido continuar sonhando. Dormir na rua é se despedir para sempre, deixar para trás aquilo que não foi, é se conformar com o transcorrido e não há nessa circunstância nenhum sentimento de dor. Mas, acordar, ao contrário, é vivenciar a contrariedade de assumir uma estranha realidade de vazio em volta, é um instante de dolorida e profunda frustração. Uma realidade amarga que um cão se esfregando no pé e mexendo os olhinhos certamente há de compensar.
Também tive um cão entre o limiar da vida e da morte, aconteceu em Berlinque, localidade da Ilha de Itaparica, numa noite de overdose, cinco xícaras bebidas de chá de cogumelos. Então, tinha 22 anos de idade. Pensei morrer, evoquei momentos de dor e de alegria e me despedi de todos os seres que amava, pedi perdão e já me preparava para desencarnar, triste diante desse inesperado fim, quando a lambida de um cachorro me trouxe de volta à vida. Deitado a meu lado acompanhara a minha lenta agonia e, quando o efeito da droga já se dissipara e a certeza de continuar vivo tornara-se eminente, vi o cachorro se enfiar num buraco cavado embaixo de minha cabana de palha.
O segui e me enfiei junto do cachorro. Dormimos abraçados, comovido em lagrimas agradeci ao companheiro inseparável na hora de minha morte. No dia seguinte ouvi os amigos me chamando em voz alta. Foram até o quarto da cabana, não me encontraram. Eu estava embaixo da casa, abraçado ao cão, tudo que naquele momento me restara na vida.
Nelson Cadena