terça-feira, 26 de outubro de 2021

"A TRAJETÓRIA DE UM GUERREIRO SONHADOR" por Sady Bianchin

 “A todos aqueles que nutrem pela opressão, pela falta de memória, a mais profunda repulsa”. (Bertolt Brecht)


Toda obra dialoga com seu tempo. No campo da memória antropológica não importa o período retratado, interpretado o tempo é sempre atual. O pensador e escritor Darcy Ribeiro, dono de uma personalidade forte e extremamente complexa, dotado de uma inteligência vertiginosa de brutal agilidade mental, foi um dos intérpretes do país mais influentes na cultura educacional e política brasileira. O escritor se mantém aceso com sua obra inquieta, pois não há morte perante a produção poética de sentidos, se fosse vivo Darcy estaria completando 99 anos de vida em defesa dos excluídos sociais, as minorias oprimidas (que são a maioria em quantidade), e dos cartas fora do baralho para a educação, sempre com previsões políticas aguerridas para o Brasil, construído sobre um Estado Nação tardio em cima de golpes, a começar pelo período colonial, que nos deixou uma herança autoritária, paternalista, escravocrata e personalista.

Nascido em Montes Claros, Minas Gerais, em 26 de outubro de 1922, era filho de Dona Fininha (Josefina Augusta da Silveira), professora primária e Naldo (Reginaldo Ribeiro dos Santos), fiscal das linhas telegráficas. Escreve, aos quatorze anos de idade seu primeiro texto social, crítico, indignado pelo sentimento de revolta e compadecido pela situação de flagelados famintos que ocuparam uma catedral da cidade. Esta imensa capacidade de se colocar na posição dos “outros”, assumir a sociedade e a situação adversa do povo como seu problema desde pequeno, fez o jovem ser mais homem, principalmente quando descobriu o movimento de Luís Carlos Prestes e a poesia de Carlos Drummond : “Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”, dizia o sábio poeta Andrade das geraes.

Ainda nas terras das montanhas de  Minas  escreve seu primeiro romance, “Lapa Grande”, um dramalhão digno de qualquer estilo de novela mexicana. Em seguida, muda-se para São Paulo e em meio à intelectualidade da pauliceia desvairada ingressa nas fileiras do Partido Comunista. Mas a grande descoberta de sua vida acontece no coração do Rio de Janeiro, quando conhece o Marechal Rondon, uma das figuras marcantes na sua trajetória, principalmente porque convida Darcy Ribeiro para trabalhar com ele no serviço de proteção dos índios, e com esta cultura étnica descobre uma nova maneira de entender o Brasil, e a questão humanística entra em pauta.

Com o espírito inovador e  de responsabilidade social, atravessa o Pantanal e concentra suas ideias na literatura indígena, desdobrando seu tempo entre as nações Terena e Kadiwéu, com o auxílio luxuoso de sua companheira antropóloga Berta Gleizer. Numa verdadeira troca simbólica surge o livro “Religião e Mitologia Kadiwéu” (1950). Rumo à floresta amazônica encontra a nação “Urubus Kaapor”, últimos remanescentes dos Tupinambás. 

Darcy Ribeiro ganha reconhecimento e com apoio dos irmãos Villas-Bôas propõe a criação do Parque Nacional do Xingu. E, logo após o educador Anísio Teixeira convidá-lo para ser pesquisador no Ministério da Educação e Cultura, com 35 anos, sua produção é intensa, publica: “Uirá sai à procura de Deus” (1974), “Arte plumária dos índios Kaapor”(1957) e “Diários Índios- Os Urubus-Kaapor”(1996).

Neste período, cria a universidade de Brasília, já no governo de João Goulart é nomeado ministro da Educação e Cultura e reitor da UNB, em seguida chefe da Casa Civil. O país havia crescido economicamente desde os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, naquele momento era necessário distribuir a renda e fazer a reforma agrária. Mas naquele contexto histórico, mais “uma pedra no meio do caminho” aparece no trajeto do apaixonado pela civilização tropical – o golpe civil e militar de 1964, uma perversa ditadura que durou 21 anos, deixando a cultura em todas as suas frentes arrasadas, uma terra árida, onde estavam plantados os sonhos daquela geração. 

O ato institucional número 5(AI-5), o golpe dentro do golpe, que instala a ditadura total no Brasil, impõe a diáspora, o exílio de Darcy, que vai ser professor no Uruguai, acolhido pela universidade. No Peru trabalha com o governo nacionalista, no México cria a “Universidade do terceiro mundo”. Com a anistia retorna ao Brasil e diz que é uma glória voltar e que só quem foi exilado entende: “Ninguém vê sua casa se não sai dela, se não conhece outra casa”. 

Neste recomeço lança o livro ”Maíra” (1976), e se casa com Cláudia Zarvos (33 anos mais jovem), recebe o título de Doutor honoris causa na Sorbonne em Paris e funda com Leonel de M. Brizola o Partido Democrático brasileiro (PDT), é eleito vice-governador do Rio de Janeiro e idealiza o ensino de tempo integral, os populares CIEPS, obra do arquiteto Oscar Niemeyer, proclamando o ditado que escola é uma propriedade básica: “Não pode jogar a criança na marginalidade, na criminalidade, ficará mais caro no futuro, se ela ficar com um revólver na mão“, afirmava o visionário Ribeiro, que é eleito senador pelo Rio de Janeiro e cria a Universidade do Norte Fluminense em Campos com o slogan: “O país que não domina a tecnologia vai ser recolonizado”.

Fragilizado e doente, Darcy Ribeiro sai do hospital e vem se refugiar na nossa cidade em Maricá, na região litorânea do Rio de Janeiro e se dedica durante dois meses integralmente à produção de sua mais importante obra: “O povo brasileiro”, um manual para interpretar a formação da realidade brasileira. Em 17 de fevereiro de 1997, morre em Brasília, mas sua memória é presente como uma lição: “Fracassei em tudo o que eu tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria, fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente, fracassei. Mas os meus fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”. 

Usando a força e o entusiasmo ou aliando os dois, o legado do escritor Darcy Ribeiro mostra que seu pensamento é atual em qualquer época. Sua obra contribui para atualizar sua trajetória. Num momento em que a democracia está viciada  por um desgoverno do atraso e da ignorância no âmbito da conjuntura nacional  , é essencial revisitar a sua produção de sentidos, reeducando os indivíduos para a cidadania, através da política de resgate da memória e do limite da representação, edificando a cultura democrática a serviço da ação transformadora, da emancipação  para construir a sociedade organizada pela paixão. Que nos permite sonhar que as gerações futuras irão limpar toda a abominação do outro, toda a opressão, para viver condicionado ao amor, à liberdade e à justiça social, na diversidade cultural entre as diferentes matrizes étnicas que formam o povo brasileiro.

Sady Bianchin

* Doutor em Teatro e Sociedade pela Università di Roma-La Sapienza. Mestre em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Professor das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA) e UFF.