Processo judicial de Céu Albuquerque teve início em 2021
Céu Albuquerque luta há dez anos pelo reconhecimento de pessoas intersexo. "Muitas vezes, uma conquista coletiva é o fruto de uma luta individual". |
Após quase três anos de espera, a pernambucana Céu Albuquerque conseguiu o reconhecimento na certidão de nascimento como intersexo. O processo judicial foi iniciado em julho de 2021 e foi concluído com a expedição do documento corrigido na última quinta-feira (7). A jornalista e ativista é a primeira pessoa no país a conseguir o reconhecimento oficial da condição de intersexo, segundo a Associação Brasileira Intersexo (Abrai).
Céu tem hiperplasia adrenal congênita, condição genética que afeta a produção de cortisol e influencia o desenvolvimento sexual e a formação dos órgãos genitais externos. Ao nascer, Céu tinha uma genitália ambígua e foi submetida a uma cirurgia de redesignação sexual, considerada pela comunidade intersexo como uma forma de mutilação. A partir do teste, Céu foi registrada com o sexo feminino. A decisão pelo procedimento cirúrgico e registro com sexo feminino foram baseados em um exame de cariótipo, que avalia estrutura de cromossomos da pessoa.
No entanto, a jornalista luta há dez anos pelo reconhecimento das pessoas intersexo, que não se encaixam nos padrões tradicionais de sexo divididos entre masculino e feminino. Essa situação é causada por diversas variações, como cromossomos atípicos, genitais ambíguos e produção hormonal fora do padrão.
“Quando eu nasci em 1991, fiquei seis meses sem registro de nascimento, esperando o exame de cariótipo sair para verem qual a prevalência de gênero o meu corpo possuía, vejo isso como a primeira violação de direitos humanos que sofri”, conta Céu.
Segundo a Abrai, as pessoas nessa situação são frequentemente estigmatizadas e discriminadas. Entre as violações, a associação destaca a falta de acesso a documentos e as intervenções médicas desnecessárias.
A retificação do registro é para a ativista uma conquista de toda a comunidade intersexo. “O resultado deste processo era muito aguardado, não apenas como uma realização pessoal, mas também como um marco significativo para toda a comunidade intersexo em geral. Muitas vezes, uma conquista coletiva é o fruto de uma luta individual, e essa batalha foi travada por meio de mim, com a esperança de um futuro melhor para essas crianças”, acrescentou a jornalista.
Ativista intersexo passou por 7 cirurgias para corrigir mutilação na infância: 'Sinto que algo meu foi roubado'
A fotógrafa Céu Albuquerque, de 30 anos, nasceu como pessoa intersexo, mas só descobriu isso há dois anos. Ela sabia que tinha um problema hormonal e que tinha nascido com genitais ambíguos, mas não fazia ideia do que era intersexo. Sua condição era vista como uma doença, uma anomalia que precisava ser corrigida.
“Eu não tenho dados exatos, mas foi entre um e três anos a primeira cirurgia que eu fiz. Foi essa cirurgia que me mutilou. Na época, essas cirurgias eram bem piores do que as que são feitas hoje em dia”, conta ela, que nasceu no Recife, mas vive em Paulista (PE).
A partir dos 15 anos, ela fez mais sete cirurgias: “Todas elas tentando reverter e ir em busca de algo que era irreversível”. Céu, que hoje atua em uma associação de pessoas intersexo, conta que a maioria das intervenções cirúrgicas para "adequar" o sexo em crianças pequenas é feita apenas por questões estéticas, para colocá-las num padrão binário (macho ou fêmea), já que, muitas vezes, a ambiguidade não representa prejuízo à saúde dessas pessoas.
“Eu sinto como se algo meu tivesse sido retirado sem o meu consentimento. Algo meu foi roubado. As cirurgias roubam a essência daquela pessoa, roubam uma parte da sua vida”, afirma.
O que é ser intersexo
Existem mais de 40 tipos de pessoas intersexo. Elas nascem com características sexuais que não se encaixam nas definições típicas de masculino e feminino. Isso pode ser perceptível logo ao nascimento ou só mais tarde, na puberdade.
Essas pessoas podem ter alterações hormonais, genitais ambíguos e outras diferenças anatômicas, ou ainda nascer códigos genéticos diferentes do padrão. Um exemplo: o corpo pode ser fisicamente feminino, mas o seu código genético ser XY (X é o cromossomo feminino e Y é o masculino), o que pode afetar o desenvolvimento e a produção de hormônios, por exemplo.
Céu tem os dois cromossomos femininos, XX, e nasceu com todo o sistema reprodutor feminino, mas tem uma condição chamada hiperplasia adrenal congênita. Isso faz com que seu corpo produza mais hormônios masculinos do que seria normal em um corpo totalmente feminino. Por isso, acabou desenvolvendo genitais ambíguos. Ela toma corticoides desde pequena, para baixar a testosterona e normalizar os hormônios.
Uma estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU), feita com base em especialistas da área, é que entre 0,05% e 1,7% da população mundial nasce com características intersexuais — o que pode significar até 3,5 milhões de pessoas apenas no Brasil.
Antigamente, pessoas intersexo eram chamadas de hermafroditas, mas o termo caiu em desuso. Além de ser pejorativo, é associado apenas aos genitais ambíguos ou pessoas que nasciam com os dois genitais, masculino e feminino.
"Hoje, a gente chama de DDS, que é a diferença do desenvolvimento sexual, porque engloba muitas variações", diz Céu. Ainda assim, é comum que médicos e entidades da saúde falem em "anomalia do desenvolvimento sexual".
Para a fotógrafa, a sociedade só consegue ver as pessoas no binarismo, homem e mulher, e não reconhece que existem variações no meio, assim como na natureza, em outras espécies de animais.
"As crianças têm, de todo jeito, de passar por esse tipo de cirurgia, chamada de 'normalizadora'. E o pior dessa cirurgia é que você não sabe a identidade de gênero que essa criança vai ter algum dia. Então, já pensou se você mutila um genital, e essa criança se identifica como homem? Como fica?"
A identidade de gênero tem a ver com a forma como uma pessoa se apresenta na sociedade. Pode ser mulher, homem, ou mesmo pessoa não binária, aquela que não se identifica com nenhum dos polos. Céu se reconhece hoje com não binária e não vê diferença em ser tratada no masculino ou feminino.
Cirurgias para 'corrigir' genitália ambígua
A prática de fazer intervenções cirúrgicas em pessoas que nascem com genitália ambígua se popularizou a partir da década de 1950.
Muitos profissionais se apoiaram na teoria de “plasticidade de gênero” de um psicólogo chamado John Money, que atuou nos Estados Unidos. Para ele, as crianças nascem "neutras" e médicos, os pais e a sociedade seriam capazes de designar o sexo e o gênero delas. Por exemplo, se você troca cirurgicamente o sexo de um menino e passa a tratá-lo como menina, ele vai de fato se entender como menina. Money chegou a ser criticado por outros pesquisadores, mas nunca mudou de ideia.
Céu tem tatuagens sobre as cirurgias e feridas abertas Foto: Aldo Carneiro/G1 |
Ainda hoje, não existe consenso entre especialistas e entidades médicas quanto aos benefícios trazidos com a realização de intervenções para mudar a anatomia de crianças intersexo.
Ativistas intersexo e órgãos internacionais têm adotado a postura a favor da autodeterminação. Ou seja, se não estiverem sob risco grave de saúde ou de vida, os indivíduos intersexo devem poder escolher se querem ou não passar por cirurgias de redesignação sexual – quando tiverem idade suficiente e condições de tomar esse tipo de decisão.
Direitos da pessoa intersexo
De acordo com documento feito pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos em 2019, os intersexo costumam relatar muitas violações de seus direitos, como discriminação, violência, falta de transparência em tratamentos médicos, intervenções cirúrgicas feitas sem consentimento e dificuldades para acesso a serviços públicos, com os de saúde e da Justiça.
Tatuagem de Céu trata das intervenções cirúrgicas pelas quais ela passou Foto: Aldo Carneiro/G1 |
No caso de Céu, além de não tido a chance de dizer se queria ou não alterar sua genitália, ela passou os dez primeiros meses de vida sem certidão de nascimento. Na época, não era possível fazer o registro sem a definição de sexo.
Segundo ela, isso mudou graças ao trabalho dos ativistas. O intersexo pode agora ter um registro sem sexo. Mas, mesmo assim, a Justiça exige que se faça uma correção depois.
"No Brasil, não temos assistência nenhuma do estado. A partir de quando você nasce intersexo, você precisa lutar para sobreviver e para não ser anulado. A única coisa que o estado quer é fazer com que você se pareça com menino ou com menina. A gente não tem apoio nenhum."